03 de Outubro

Eu sei o que Thomas pensa. Eu estou aqui, no canto desta sala, dia após dia observando seus hábitos e vícios. Fico solta pela casa, passeando entre paredes e a mente de meu criador. Se fosse possível viajar para dentro da mente de uma pessoa, a paisagem pareceria um labirinto. Tenho certeza de que foi o que Thomas pensava enquanto arrumava algumas caixas no antigo apartamento, onde tudo era escuro mesmo quando a luz estava acesa. Seus movimentos de abrir e fechar embalagens eram automáticos, enquanto sua mente vagava pela possibilidade de entrar na mente de alguém.

Thomas não dormiu por 36 horas. Ele estava longe de casa, sozinho em um apartamento deixado por alguém que não existe mais. Lentamente, deitando no assoalho de madeira, fixou os olhos em um ponto fixo do teto. Como sempre, uma torrente de pensamentos não o deixava relaxar. Desde a pequena barata passeando no lustre encardido até a viagem que gostaria de fazer até seu próprio labirinto. A sensação que ele tinha era de que alguém estava apertando seu pescoço. A respiração difícil, a angústia, o pesar. Sentimentos que ele sabia que precisavam ser expurgados o mais rápido possível, a fim de dar espaço a algo frutífero e útil. Ele estava cansado de olhar pela janela e ver apenas chuva. Aquelas nuvens pesadas já pairavam na cidade há tempo demais. Algum vento muito forte precisava dissipar aquela tempestade.

Ao fundo, ouvia-se Lacrimosa, de Mozart. Vinha do vizinho, e Thomas achou risível a coincidência. O ar estava tão denso que talvez posse possível cortá-lo com uma faca.

A barata que estava no teto caminhou, caminhou. Baratas são pouco espertas. Ela não viu a teia no lustre, ficou presa. Debateu-se, mas corri até lá e me assegurei de que ela não sairia mais dali. Suguei seus fluidos, enquanto Thomas nos observava com um misto de repulsa e fascínio. Em seguida ele adormeceu.

 

04 de Outubro

Quando Thomas despertou eu já estava em cima da escrivaninha, recém alimentada de moscas burras que caíram na mesma teia. Mas minhas patas estavam limpas. Meu criador soltou um gemido alto de dor quando se erguei do chão duro onde dormira por horas. Ele teve sonhos ruins, que talvez não se lembre, mas eu ouvi seus resmungos durante a noite. Acho que sonhou com o labirinto. Eu sei disso porque ele balbuciava palavras que davam a entender que ele estava seguindo por algumas direções confusas, como alguém perdido em uma trilha desconhecida. Ele descreveu, enquanto dormia, paredes escuras e decoradas com quadros de diferentes tamanhos, com imagens que lhe pareceram confusas demais para fazerem algum sentido. Fotos de seus pais segurando cabeças de animais mortos, aranhas com asas e mariposas do tamanho de pratos, hienas com duas ou mais cabeças. Eu acho que Thomas visualizou experimentos de pesadelos mesclados a temores pessoais simbólicos. Ainda em sua narração onírica, o ouvi relatar que no fim de um corredor havia um espelho. Embora a expressão dele estivesse calma, o reflexo no espelho mostrava seu reflexo com um semblante muito raivoso. Eu gosto de observá-lo, de ficar à espreita. Sei que ele guarda dentro de si um universo de culpa, medo e vergonha. Ele me observa, também. Eu estou aqui para isso, aliás, ser um objeto de contemplação de meu criador.

 

05 de Outubro

Tudo o que Thomas precisa é de um reencontro com seu passado. Ele está há longos minutos caminhando em círculos pela sala quase vazia, fumando compulsivamente, bebendo café, comendo restos de comida chinesa e fumando ainda mais. As vezes ele corre até a mesa, pega uma caneta e escreve alguma coisa na parede. Frases copiadas ou frases dele. Hoje ele escreveu: O paraíso pertence aos insones. Voltou a passar noites em claro, e aparentemente está bem assim. Ele cria muito. Cria músicas e teorias. Cria histórias e hipóteses. Mas tudo o que ele precisa é de um reencontro. Pousei em cima de um crânio de gesso que ele usa como peso de papel. E de lá eu o admirava em sua essência. Ele é tão transparente que nem imagina. Posso ver claramente luz e trevas brigando dentro dele. Só ele não percebe.

Dizem que minha espécie é imprevisível, porque sou uma das mais rápidas e agressivas da família Theraphosidae. Pode ter sido por isso que Thomas me escolheu para lhe fazer companhia, deve ter acontecido uma identificação, mesmo que inconsciente, mesmo que ele não seja um tipo explícito. Não aumenta o tom da voz, não agride ninguém. Mas se irrita com facilidade.

Tudo o que ele precisa é de um reencontro. Enquanto o tempo passa eu aproveito para sorver das minhas pequenas vítimas seus fluidos com a mesma ânsia que Thomas engole goles de café. Movimentos ritmados.

Caminho pela sala fazendo movimentos semelhantes aos dele, sei que está ansioso. Movimentos ritmados.

Por debaixo da porta aparecem envelopes. O zelador do prédio deve estar distribuindo as correspondências de cada apartamento. Thomas ignora. Vem até mim e põe sua mão próxima às minhas patas. Considero um convite. Subo em seu braço caminhando lentamente até seu ombro. Ele volta a deitar no chão. Caminho até seu rosto e paro entre o olho fechado e o nariz. Parece que a proximidade com o seu cérebro me deixa mais perto de seus pensamentos também. Ele precisa de alimento, não apenas para o corpo, mas para a alma. Eu absorvo as energias das minhas vítimas, mas as minhas energias é Thomas que absorve. O céu, antes escuro, agora está aberto, mostrou até um tímido arco-iris.

 

06 de Outubro

Estou aqui, embaixo da mesa. Observo apenas os pés de Thomas. Voltou a chover, mas uma chuva fina, e o tempo segue ensolarado. Pingos ritmados.

A campainha tocou, Thomas atendeu rápido. Vejo mais dois pés, conhecidos, familiares. São os pés dela, que entra e anda em círculos também, mas ambos estão em silêncio. Quando os dois pares de pés se aproximam muito, eu consigo entender melhor. Tudo o que eles precisavam era do reencontro.

O arco-íris de ontem deve ter sido uma premonição. Ou, no mínimo, uma feliz coincidência. De volta para a parede, caminho até o outro canto da sala. Outra barata se prendeu em minha teia.

 

Sobre o autor:

Gabriela Moura, comunicadora, escritora, estudante, negra, feminista, ativista de São Paulo encerra a série com seu texto “Azul Cobalto” tão reflexivo e inusitado quanto qualquer de seus textos. Tão inusitado que propõe como narrador uma peculiar tarântula. A obra de Gabriela pode ser acompanhada através de seu blog: http://nadasobcontrole.com/ e aqui mesmo na páginas virtuais da Mood https://www.mood.com.br/author/gabriela/.