Imparcialidade. Será que ainda há lugar para discussão de um tema como esse? A indústria da informação ganha contornos de grandes conglomerados: uma distribuidora de filmes pode possuir seus próprios canais, anunciar seu filme em seu jornal das dez, sites de jornais renomados escrevem sobre um CD da gravadora que paga um generoso anúncio no próprio site, é só clicar e levar. O que dizer da informação imparcial, esse pequeno grão de areia, dentro desse único paradigma: a guerra pela audiência? Em nome disso surgem os atores-âncoras do jornalismo (informação ou entretenimento?), o sensacionalismo, a descontextualização e a correria pela notícia do último segundo, quentinha, saindo do forno direto para internet (por vezes ainda irresponsavelmente crua), para aquele cidadão viciado em furos de última hora (aliás quem serão estes integrantes desta nova modalidade de loucura: o maníaco-internauta?). Como fica o acontecimento, o fato, a informação, a notícia, tão frágeis e quebradiças, neste turbilhão de influências? Mas basta ter calma. Babilônia 2000 é a prova de que alguém ainda se preocupa em tentar retratar o acontecimento, a diferença, o outro, com o devido cuidado mais do que indispensável numa empreitada como essa.

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Eduardo Coutinho e sua equipe (que colabora intensamente com o diretor, entre eles a professora de cinema documentário da UFRJ Consuelo Lins) percorrem a comunidade do Chapéu Mangueira no morro da Babilônia, em Copacabana, no último dia do ano de 1999. O resultado é recompensador. Coutinho consegue extrair os anseios, sonhos e tristezas de moradores muito mais próximos de nós (classe média pra cima) do que imaginamos.

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Esses personagens maravilhosos dos filmes de Coutinho, que interpretam eles mesmos, tão de carne e osso, que choram e riem com plena espontaneidade, são trabalhados seguindo uma estética que confere veracidade e simplicidade aos seus depoimentos. Coutinho adota os planos-seqüência, não utiliza voz em off do narrador, nem trilha sonora. Seu enquadramento é simples, sem firulas ou planos mirabolantes. Uma passagem fora de foco, ou uma luz estourada, não tem importância. Pois o código, a filmagem, é evidenciada a todo momento. A equipe interage e revela sua presença incontornavelmente ostensiva, admitindo seu olhar particular. O filme é justamente esse movimento, esse choque, entre uma equipe de filmagem de pessoas da zona sul e uma comunidade de um morro do Rio, um encontro tão impossível, tão impensável em uma situação normal: grupos que se esbarram, mas não se vêem.

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O eterno esforço de retratar a realidade sem alterá-la, a tal imparcialidade, deve ser encarado como um exercício inatingível, porém necessário. Sebastião Salgado é um exemplo dos que praticam este esforço. Ao tirar uma foto procura incorporar todos os elementos que fazem parte, indiretamente, desta foto: a situação que se apresenta, além de sua própria intervenção particular. Ele abandona um distanciamento calcado na não-intervenção, supostamente imparcial, para abraçar uma postura mais carne, mais presente, em que o próprio fotógrafo é incorporado como elemento integrante do processo fotográfico. É por conta desta eterna e incontornável submissão aos fatores em devir, mutantes, indeterminados, que o fotógrafo, o cineasta, o jornalista, enfim – deve se soltar das amarras do planejamento prévio, do conceito feito antes do contato direto, o pré-conceito, para estar antenado ao acaso, ao imponderável, o imprevisível, às experiências que se colocam e se renovam a cada momento, indefinidas, pequenos desafios incessantes, carregados de significação. E é justamente isso que está em jogo em Babilônia 2000, Santo Forte, Cabra Marcado para Morrer, enfim, em toda cinematografia do cineasta.

. “Todo documentário tem um pouco de ficção e toda ficção tem um pouco de documentário”, dizia Godard. Na ficção, por mais que tenha sido bem planejada e calculada a filmagem, ela sempre estará sujeita aos acontecimentos que se dão no momento em que se apresentam, o tal imponderável de que falávamos. No documentário, por mais bem intencionado que se esteja, seguindo a ambição de retratar a realidade neutramente, não há como fugir da violência que o contato direto com ela produz, o que era já não é mais quando se tem uma equipe de filmagem, pessoas diferentes, com jeito de falar e de se vestir diferentes, equipamentos, câmera, enfim, o real se desmancha, ou melhor, se transforma: é o que era somado ao presente, que o renova. E daí a beleza, a simplicidade e humildade que é fazer um filme em que esta violência é evidenciada sempre, sem rodeios ou peneiras.

Outro grande documentarista, o russo Dziga Vertov, que defendia um cinema que retratasse a vida como ela é, certa vez disse: “Acreditamos ser o nosso dever não fazer apenas filmes de grande consumo, mas também filmes que originem filmes. Esses filmes deixam uma marca, tanto em nós como nos outros. São a garantia indispensável das vitórias futuras.” Hoje, momento em que a tecnologia digital permitiu que um número maior de pessoas façam seus próprios filmes, conjugando baixo custo e qualidade – certamente Coutinho influencia e ainda influenciará uma legião de cineastas ávidos por uma boa estória (ou será história?), por personagens tão apaixonantes como os moradores do Chapéu Mangueira. E ele prova que uma boa estória pode estar mais perto do que você imagina, talvez mesmo ao seu lado.

 Por João Bernardo Caldeira