Essa coisa de bloqueio criativo é um problema, cara.

– Eu to com um problema, cara.

– Que problema, Luis?

– Bloqueio criativo, sabe?

– Ah, sei como é…

– Não, tu não sabe. Eu simplesmente tenho o maior problema de bloqueio criativo do mundo. Sabe, não é algo normal. Um escritor tem bloqueios e limitações, e se perde nos assuntos e até nas ideias às vezes, mas o que acontece comigo não é algo simples. Eu simplesmente não tenho imaginação criativa. Não consigo criar nada.

– Luis…

– Sabe, hoje de manhã eu saí pra caminhar no parque e fiquei pensando naquelas pessoas que veem algo vivo em tudo. Sabe, vivo. Se mexendo. E fiquei imaginando como seria se eu pudesse olhar pra um poste e ver um palhaço com pernas de pau fazendo um espetáculo de malabarismo no meio da rua, quando de repente um cachorro barbudo de chapéu e óculos escuros chegasse e simplesmente se ocupasse da sua perna, como faria com um poste. E esse cachorro barbudo e sem o mínimo de educação urinaria – não, mijaria – nesse palhaço malabarista sem um pingo de humanidade latente dentro de si. E aí esse cachorro de repente começasse a falar e reclamar sobre o problema social dos animais de hoje em dia. Sobre como cachorros querem simplesmente “ser cachorro” e como isso anda difícil. E então chega um gato um coelho e uma tartaruga e se sentariam em frente a esse animal, no meio da rua, atrapalhando todo o transito e o trabalho do poste/palhaço. E esse cachorro – um pastor alemão aposentado – explicaria como a desigualdade dos seres humanos foi – de forma cruel e sem coração, sem no mínimo se fazer um questionamento sobre isso – passada a eles. “Vocês sabem do que eu estou falando”, ele diria (latiria). “Cachorros de madames com unhas pintadas e dormindo em frente a lareiras com camas confortáveis e roupas quentes enquanto outros são jogados em lixeiras fedidas e obrigados a passar fome, frio e coisas piores por conta de que simplesmente o mundo não é mais o mundo dos cachorros, e sobreviver ficou muito mais difícil.”

– Luis…

– Sabe, cara, aposto que ele diria também que os cachorros simplesmente não dão a mínima pra isso tudo. Se é quente, frio, se tem casa ou não. Porque os cachorros são assim, eles não tem ressentimentos, eles não conseguem ver drama em nada que diga respeito a eles. São apenas cães, e querem apenas ser. Sabe. “Ser cachorro”. O problema maior é o de ser cachorro, hoje em dia. Aquele velho barbudo diria: “Tu pode ser um pastor policial, como eu. Pode ser um poodle bailarino, ou um vira-lata atleta, ou até um simples cãozinho de estimação pra passeio, mas, que diabos, como tá foda ser só cachorro hoje em dia. E eu me pergunto que puta diferença faz na vida de um cachorro ter as unhas pintadas ou não, comer da ração cara ou não, ter um diamante na coleira ou não. Isso é apenas reflexo dos seres humanos em nós. E, porcaria, não queremos ser como eles. Mas que escolha nos restou…” Sabe. Esse cachorro provavelmente amaria os donos, mas cairia fora no mesmo instante se soubesse que tem alguma solução. Mas não tem, cara. Na rua ou na cama de plumas, ou no sofá, ou rasgando travesseiros, catando lixo… não tem solução. Não dá mais pra ser cachorro. Cachorro mesmo. E eu acho que o cachorro barbudo diria isso, se ele realmente encontrasse um poste/palhaço fazendo malabares no meio da rua. E sabe, poderia, depois disso tudo, cair uma chuva tão forte que furasse o asfalto e nos desse aquela bela imagem de rua esburacada. Como se o asfalto tivesse sido baleado e morresse ali. Morresse ali. Seria tão poético isso. Ah, Allan, como eu queria ser criativo, mas essa droga de bloqueio…

– Luis.

– O que é?

– Vai se ferrar.

 

 

Este divertido conto é fruto da rebeldia e irreverência de Bruna Waltrick, escritora e estudante de Letras vinda da Serra Gaúcha, mais especificamente de Caxias do Sul, cidade de uvas e indústrias. Qualquer que tenha sido o background cultural da jovem nascida em 95, certamente ajudou a moldar suas habilidades para criar textos que, mesmo divertidos como este, fazem refletir sobre os pontos mais detalhados da vida. Aventure-se pela obra de Bruna em seu blog: http://vormenpoesie.wordpress.com/