A madrugada me sorria convidativa, como se uma cortina de trevas e mistério se abrisse diante de meus olhos, consumindo-me lentamente. Eu estava inerte diante da janela, observando as árvores de inverno que enfeitavam as ruas e, como sempre, não havia ninguém me esperando. Os postes, as demais casas da vizinhança, o asfalto surrado pelo princípio do frio, era tudo silente. Eu estava sozinho.

Segui até a escrivaninha e observei o papel em branco. Já estava sobreposto lá, talvez esperando por minha investida, pela chance de ser preenchido com alguma coisa substancial, mas não imaginava que carregaria o fardo de minhas palavras, sempre tão vazias. Então alguém me chamou no computador. Olhei para a tela, era a desconcentração, o papel teria que esperar um pouco mais.

Anônimo:

Suas palavras me inspiram. É como se você descrevesse exatamente todas as coisas que eu sinto. Tudo isso é mágico. Só queria que soubesse.

E eu só queria não saber, fingir que todas as minhas confusões mentais eram somente minhas, que o mundo não é realmente ruim e que a dor pela ausência de um sentido maior me seria particular. Isso não é altruísmo.

Voltei meus olhos para baixo e comecei a escrever. Gostava da sensação de ter a caneta entre os dedos, acho que assim como a pena afogada em tinta, é o detalhe que torna a escrita natural. Digitar rapidamente algum pensamento e postá-lo na internet nunca foi como criar uma história e lhe desenhar um título. Por isso eu escolhi os cadernos e não o bloco de notas do computador, era uma forma de sentir a arte em mim, torná-la palpável, para variar da maioria dos aspectos da minha vida; virtual.

Perdi as horas não olhando para o relógio e já estava quase amanhecendo. Soube pelo anúncio prévio dos passarinhos “extraterrestres” que tentavam me acordar antes do despertador. Gostava de chamá-los assim. Dizê-los seres vindos do espaço com o intuito de me importunar fazia de mim alguém importante, pintava minha realidade com um pouco daquele aspecto fantástico dos contos que eu lia. Já estava na décima página de qualquer história e rabiscos quando o sono instantaneamente me atingiu. Eu precisava reler alguma frase, mesmo que fosse a última, mesmo que fosse uma perfeita droga, e assim o fiz.

Ele descobriu que as pessoas que vagavam pela cidade não estavam mortas, apenas desfrutavam de um estado de apatia e extrema incoerência. Pois também não estavam vivas. Moviam-se como sombras e se alimentavam da fé que identificavam em seus semelhantes. Rapidamente ele se viu cavando alguns túmulos no cemitério, ouvindo o debater dos corpos contra os caixões em todo o perímetro do lugar. Soube pelo breve precipitar de suas indagações que a resposta para o paradeiro dos habitantes da cidade estava lá, viva e enterrada. Quanto mais cavava, menos conseguia encontrar qualquer vestígio da madeira que deveria compor a superfície dos caixões. Era como num pesadelo, onde o labirinto de seus próprios temores tomava forma e moldava a consequência do que deveria ser fruto de mero acaso ou destino. O garoto era o único ser consciente e, para seu total desagrado, a pior de todas suas intuições estava gritando-lhe aos ouvidos: fuja, eles vão te matar!

Não sei dizer se foi o sono ou qualquer outra coisa além de explicações racionais, mas ao ouvir o grito eu tive certeza de que o tempo e o espaço se desfaziam ao meu redor. Fechei os olhos e senti minha cabeça sendo esmagada por uma espécie de compressão interna e, por um breve momento, pensei que fosse desmaiar. Então acordei. Não, eu não me lembro de ter dormido, mas acordar é definitivamente o termo e meu quarto não era mais o lugar desenhado ao meu redor.

Lentamente o ambiente se transformara, como se traços invisíveis tomassem forma mediante alguém os comandassem. Eu estava assustado, confesso que estava perdidamente apavorado, pois cada nova imagem que surgia era como o deslumbre de meus pensamentos mais obscuros e reservados. Aquele lugar era o cenário da última coisa que escrevi, um pouco antes de adormecer, considerando que o tivesse realmente feito. Eu me encontrava no cemitério, mas o garoto, digo, o meu personagem principal, não se fazia mais presente.

Comecei a escutar os gritos guturais, os reconheci, pois eram exatamente como havia imaginado o som daquelas criaturas sem vida que se moviam pela cidade. Foi também quando senti algo pesando sobre minhas mãos. Olhei para baixo e lá estava ela, a pá. Era eu, o personagem principal, aquele que estava cavando e seria morto. Eu.

Continuei a cavar como se uma força desconhecida me guiasse naquele sonho, pesadelo talvez, dizendo-me exatamente o que fazer, ainda que não detivesse voz. Eu sentia as presenças se aproximarem, sentia sua fome e o modo como desejavam cada pedaço de mim. Acordar, naquele estado de consciência, não era uma opção.

Finalmente encontrei uma superfície sólida com a ponta da pá e comecei a escavar com as mãos, procurando algo que abrisse o compartimento. Mas tarde demais, no segundo seguinte eles estavam atrás de mim, puxando-me, despindo-me, e a dor de suas unhas era a mais real que eu já havia experimentado. O que estava acontecendo? Onde estava a minha mente? Um vulto disforme se aproximou e jogou os corpos que tentavam me consumir para longe, protegendo-me do que eu julgava ser uma morte lenta e indecifrável. Fechei os olhos e, pela primeira vez naquela noite, adormeci. Mas a minha cama… O meu antigo quarto… Não foi neles que acordei na manhã seguinte.

 

 

Jess Pedrosa é formanda em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas e aplica muito do seu interesse pela psicanálise em suas produções literárias. Os textos de Jess lembram ligeiramente o tom da literatura clássica britânica, e costumam ater-se a relação de seus personagens com as coisas e com o mundo. Grandes coisas podem ser esperadas desta amazona da nova literatura brasileira.