Quando o velho adentrava o boteco, meio enviesado, entre tropicadas e cusparadas, toda a sorte de gente parava o que estava fazendo ou entornando para se reclinar em boas-vindas benfazejas.

Toda vez era a mesma coisa e toda vez impressionava-me a vida própria do lugar, do pulular ora fastidioso ora apressado de salves, olás, porravelho e saudações menos elogiosas. Isso, saliento, só acontecia quando ele chegava; sábio pela idade mas ainda mais sábio por sempre ter colocado limão na pinga, era um desses talhes não lá muito simpáticos, guascos, desconfiado e não dado a atrevimentos de ordem nenhuma, olhe lá, mas que ainda assim cativavam a ramada etílica que se apossava do balcão todo final de noite e concedia a esses devotos do deus caneco, pelo dom da palavra cantada, ao menos um bom motivo para chegarem em casa e desafivelarem o cinto antes de caírem fedidos e embriagados em seus respectivos sofás tortos.

Pois, digo-lhes, contava histórias como ninguém. ”Já estive em todos os lugares”, ele costumava começar, balançando de leve o copo pra aumentar o colarinho da cerveja, ”e não existe canto ou buraco nesse mundo, habitado ou não, em que não tenha pisado.” E nessa hora seu rosto ficava estranho, repleto de palavras, e a voz saía chiada e cheia e pensamentos, e todos parávamos nossas conversas sobre a decadência moral do país para escutar a cantilena do velho.

 

Sua cabeça curvava-se de forma cúmplice no começo, como se o causo fosse pesado demais, e ele iniciava baixinho, quase envergonhado, e nessas horas, digo-lhe, a gente escutava até a respiração das paredes e o piscar de olhos das garrafas. E jorravam cenários imagéticos enfeitados com diálogos impossíveis; às vezes a camisa era arregaçada para mostrar uma ou outra cicatriz que comprovava suas inverossimilhanças dialéticas, e nessa hora a gente toda soltava alguma exclamação de espanto do tipo porravelho, nãopodeser, vaisefoder, e cutucávamos com os cotovelos uns aos outros, felizes, convencidos, o velho realmente lutou na guerra maior, o velho realmente comeu a mulher do Roberto Carlos, o velho realmente deu aquele carrinho no Bececê que garantiu o título do Palmeiras em 60.

O velho era casado com uma gringa austera que só aparecia no boteco quando este não dava notícia até meia-noite. Nesses casos, aparecia antes da primeira hora da madrugada, descia do carro com movimentos elegantes como o de uma boneca art deco crescida, cumprimentava-nos com a cordialidade treinada dos médicos e sussurrava umas coisas em francês no ouvido do velho, que fechava os olhos como se aquelas palavras ao pé do ouvido fossem melhor láudano do que os que ele havia bebido em copos americanos. Daí ele, rejuvenescido após essa reza de mon amour pra cá e pra lá, abotoava de novo os dois primeiros botões, espalmava a mão na camisa pra se engalanar, despedia-se com um sorriso esperto de quem está em paz com o mundo e nos deixava lá, devotos sem seu deus, comentando as aventuras escutadas com doses cada vez maiores até que esquecêssemos todos o caminho para nossas casas.

Eram tempos simples e alegres, de etílica plenitude. Mas a história dos homens, sabemos, passa pelo degringolamento antes da paz absoluta.

 

Primeiro o velho começou a perder mãos bestas na cacheta, mas isso considerávamos nosso próprio mérito; depois de anos sendo o primeiro a descer as trincas na mesa com o condescendente ar da vitória, era mais do que justo que conhecesse, ao menos as terças e quintas, o dissabor da derrota no carteado.

Mas aí o velho chegou um dia vergado, cor de alabastro, segurado no antebraço do chileno da padaria que alertou ter flagrado-lhe vomitando sangre y outras cositas más entre a roda de seu fusca e a guia da calçada. De prumo mandamos um dos guris trazer a francesa e enquanto ela não chegava todos velamos o velho numa angústia cretina e maleva que não passou nem quando a dita cuja elegantemente abriu caminho entre nós e mediu a pulsação no braço do velho, que não falava mais nada, não contava história, só respirava como respiram todas as coisas e só olhava ao redor como também olham todas as coisas.

Ficamos uma semana sem notícia ou causo do velho até que nosso messias da cevada e da cana voltou, mais magro e mais sedento, e novamente o lugar ganhou vida com todos os putaquepariuvelho, porravelho, alôvelhobêbado. E tudo então era como antes, todos sorriam e se aprumavam pra ouvir os contos dourados, mas eu percebi que a mão tremia um tanto quando balançava o copo pra aumentar o colarinho da cerveja, que ele pigarreava mais do que o necessário, que as olheiras não eram bem olheiras, que quase não conseguia colocar o limão na pinga.

 

Então, progressivamente, pra gente ir se acostumando, o velho começou a aparecer menos e menos no bar. E, nesses hiatos infindos de histórias, a francesa às vezes aparecia e dizia, num português sotaqueado e sofrível, que ele ia bem mas nem tanto, que os médicos o haviam proibido de beber mas vocês sabem como é, que devia escutá-la mais. Sempre sentava-se ao meu lado e lançava um sorriso cansado na minha direção, possivelmente nem desconfiando que assim que ela se levantava pra ir embora eu entortava e estalava o pescoço pra vê-la gingando até o carro.

O velho ainda apareceu mais uma vez antes do fim, esgualepado e sangrado, só osso. Não quis contar o que tinha mas a francesa já havia deixado escapar uma vez que estavam mudando de oncologista, que este que consultavam fedia a cigarro e por isso era moralmente indigno de confiança, e depois disso todo mundo foi deduzindo, cada um a seu passo, quanto tempo lhe restava. Mesmo assim, teve pulmão e fígado pra entornar uma dose de salinas, que, tenho certeza, lhe desceu na garganta com gosto de despedida, e deu a recitar uma história inédita em que fora confundido com ACM num restaurante em Salvador e comera, de graça, sarapatel o suficiente para alimentar a todos nós que o escutávamos. ”Velho bom, velho ligeiro”, entoávamos, sabendo que estávamos diante do maior ser humano possível, e brindamos, e brindamos, e brindamos.

 

Um dia chegamos pra beber e encontramos as cortinas baixadas. Entreolhamo-nos, compreensivos, e sabíamos o que isso deveria significar, pois o boteco já levara chumbo, tempestade e fogo e jamais havia nos lacrado a entrada. Mais que o medo, o luto já bafejava em nossos cangotes.

O dia seguinte foi de romaria e procissão. Abraçados, feito xifópagos, dois dos bêbados mais íntimos d’O Velho desfaziam-se num pranto caudaloso de cortar o coração. Não havia pulular de vozes, não havia salvevelho, putaquepariuvelho, porravelho. Haviam, apenas, os murmúrios, os soluços, as oferendas etílicas ao único altar possível, seu eterno banquinho na beirada do balcão, e ali relembrávamos as histórias do jeito que dava, mas não era a mesma coisa, nem quando a francesa chegou, pranteada e lavada, e se sentou do meu lado e lançou o mesmo sorriso cansado por detrás dos óculos escuros e do vestido igualmente negro. Apanhou minha mão, em busca de apoio, e eu devolvi indecentemente seu aperto, me sentindo culpado por tarar a mulher do velho assim, em seu santuário, e pra amenizar resolvi ciceranear a contação de causos. De repente toda a sorte de gente me olhava do mesmo jeito com que admirava a eloquência do finado e descobri que o velho não era uma pessoa, era um posto, e apertei os dedos da francesa enquanto toda a gente falava porravelho, isso eu não lembrava, isso não pode ser.

 

 

Sobre o autor:

O segundo conto do projeto Novos Escritores é apresentado por Marcelo (assim, apenas Marcelo) um jovem boêmio (com o perdão do cliché) que talvez lembre Hemingway ou Bukowski no gosto pela escrita embriagada. A literatura do jovem autor Paulista, que também é ukelelista, é regada de sentimentos profundos misturados a um humor maroto e incríveis jogos lexicais.

Apesar de não compartilhar muitos dos seus textos, Marcelo publica vídeos de sua produção musical aqui: https://www.facebook.com/ThisIsNotaCavaquinho