Março, mês da mulher. Mês de ganhar rosa na saída do metrô e continuar apanhando em casa. De ganhar chocolate do plano de saúde e continuar sendo maltratada pelo ginecologista ou retalhada pelo obstetra. De receber recado piegas em fanpages de agências de publicidade e continuar tendo o corpo exposto pra vender cerveja. De ganhar parabéns no elevador e continuar sendo piada entre colegas de Tecnologia da Informação, Engenharia e outras profissões ditas masculinas. Ah, o dia da mulher…dia que ninguém procura saber por que surgiu e todos resumem a mera distribuição de brindes estereotipados.

O presente: desconto na academia
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A realidade: gordofobia bombante

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O presente: Mensagem fofa de lojas de roupa

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Realidade: Uso de mão de obra explorada em trabalho análogo ao escravo. Ou seja, enquanto a Renner te presenteia com um descontinho nas peças, diversas pessoas, incluindo muitas mulheres, trabalham até 16 horas por dia para fabricar a blusinha que você achou um ar-ra-so.
“Nas duas oficinas da cadeia de produção da Renner, a fiscalização do Ministério do Trabalho constatou condições degradantes de alojamento, jornada de trabalho exaustiva de 16 horas, retenção e descontos indevidos de salários, servidão por dívida, uso de violência psicológica, verbal e física e manipulação de documentos contábeis trabalhistas sob fraude.”
Fonte: http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/fornecedoras-da-renner-pagarao-r-1-mi-por-trabalho-escravo

E a surpresa amarga (nem tão surpresa assim) quando você abre um site de notícia e vê que não é raro uma mulher sofrer assédio no local de trabalho.

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O presente: a empresa que considera a mulher como “o perfume do mundo”, dá desconto na compra de fragrâncias.

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A realidade: Ser o perfume do mundo, ser “uma flor”, ou qualquer outra analogia que una a imagem da mulher à imagem de algo frágil e delicado é o reforço do estereótipo mais batido sobre as mulheres: a ideia de algo intocável, imaculado, e o pior, algo que precisa se manter assim. Perfume é legal, mas por que você tinha que me resumir a isso, senhor publicitário? Enquanto isso:
“Crimes de honra” são assassinatos de meninas ou mulheres a mando da própria família, por alguma suspeita ou caso de transgressão sexual (quebra de regras e/ou tabus) ou de comportamento, tais como adultério, relações sexuais ou gravidez fora do casamento – ou mesmo, se a mulher for estuprada. O crime é praticado para não “manchar o nome da família”. A ONU estima que, no mínimo, 5 mil mulheres são mortas por crimes de honra no mundo por ano. Os assassinatos ocorrem de diversas formas, como por armas de fogo, facadas e estrangulamentos; também sendo comuns que as mulheres sejam mortas queimadas, apedrejadas, obrigadas a tomar venenos e jogadas pela janela.

Fonte: http://noticias.terra.com.br/mundo/violencia-contra-mulher/ 

O presente: um corte de cabelo gratuito pra quem comprar uma passagem. Eba!

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A realidade: Um corte de cabelo não é suficiente para diminuir o trauma de mulheres que sofrem assédio no trabalho.
“Pode começar com cantadas e insinuações, evoluir para um convite para sair e chegar ao ponto de forçar beijos, abraços e outros contatos mais íntimos. Algumas vezes, ocorre mediante ameaça de demissão ou em troca de uma vantagem ou promoção. Em todo o mundo, 52% das mulheres economicamente ativas já sofreram assédio sexual, segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho).”
Fonte: http://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2013/03/08/52-das-mulheres-ja-sofreram-assedio-no-trabalho-falta-de-provas-dificulta-condenacoes.htm

O presente: Promoção de camiseta com uma fabulosa frase de reforço de estereótipo.

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A realidade: problema óbvio. Mas tudo bem, não dá pra esperar muito de quem lucra com racismo.

Algumas campanhas trazem um paradoxo bem evidente, como a marca de roupas que faz promoção com alta carga emocional para o Dia Internacional da Mulher, mas lucra em cima de trabalho escravo de mulheres. Outras imagens não são tão óbvias. O que uma marca de cosmético tem a ver com crimes de honra praticados no outro lado do mundo? A marca, nada. A campanha, tudo.

A publicidade não anda muito criativa, sinto informar. E não é legal falar isso. Eu trabalho nessa área e quero enfiar minha cabeça em um buraco no chão a cada nova peripécia da Skol, da Old Spice e da Veet, por exemplo. Os publicitários acreditam que criatividade pode, sim, ser pautada em ofensa, e acham isso natural. Vamos lembrar que o fato de o lucro a todo custo existir, não quer dizer que seja essa a forma correta de vivermos em sociedade.  E os sistemas econômicos têm tudo a ver com esse papo. As grandes marcas de cosméticos, de bolsas, ou de qualquer item considerado exclusivamente feminino, fazem campanhas voltadas para esse público de maneira acrítica e com forte apelo à suposta fragilidade da mulher. Essa ideia de que mulheres são mais fracas, física e psicologicamente, é reforçada constantemente, e assim, mulheres perdem sua autonomia ao serem consideradas muito mais emocionais e menos racionais e, por isso, menos capazes de tomar decisões. Estão sempre à mercê das ordens do pai, do irmão mais velho, do marido. Homens exercem força sobre nós, e mesmo quando somos de famílias menos conservadoras ainda é possível sentir os resquícios de uma educação patriarcal: senta direito, você é menina! Não, você não vai sair com essa roupa. Vai sair assim desarmada, sem colocar nem um brinquinho? Como assim você não sabe cozinhar? Você cozinha bem, já pode casar. Ser piloto de avião/engenheiro/motorista é coisa de homem.

A outra marca oferece como “homenagem” um corte de cabelo. Ok, sabemos que as marcas debocham da nossa cara deliberadamente nesta data, mas é sempre surpreendente quando elas conseguem ser ainda mais absurdas. O Dia da Mulher não é dia de comemoração, de dar flor, chocolate ou corte de cabelo. É dia de reflexão, é uma pauta dentro dos debates de Direitos Humanos, e não data festiva. É data de reforçar as conversas sobre violência doméstica, acesso a educação, saúde e acesso a mercado de trabalho, entre outros temas onde mulheres ainda lutam por condições e respeito.

Cada newsletter que eu recebo me oferecendo ofertas imperdíveis para o “meu dia”, me faz revirar os olhos, e não é de prazer, é de tédio e decepção pelos meus colegas comunicólogos que reproduzem, sem questionar, campanhas fracas. Livros de histórias românticas, DVDs de comédias românticas onde a mocinha corre atrás do cafajeste que no final se regenera e vira príncipe, depilador elétrico, fogão ou qualquer outro aparato de cozinha, e por ai vai. A gafe é imensa.

Se você quer vender computadores, por que não lembrar que a primeira programadora do mundo foi uma mulher? Poderia render uma boa peça publicitária sobre mulheres na ciência.

Se você quer vender livros, por que não promover debates sobre a biografia de historiadoras, filósofas, escritoras e pintoras?

Não é difícil, mas certamente requer um esforcinho a mais, que muitas marcas parecem fazer questão de esquecer: respeito.

Enquanto um editor de HTML programa um e-mail marketing oferecendo um lindo jogo de panelas pro Dia da Mulher, uma mulher é estuprada a cada 12 segundos.