Por Aruan Drako

 A Explicação

Bom. Eu havia prometido a alguns amigos e amigas que faria um relato sobre o que presenciei e o que achei da manifestação do dia 13 de Junho em São Paulo.

Pensei em fazer um relatório mesmo. Falar de como a manifestação estava pacífica, como foi legal ver senhores e senhoras de idade, pessoas de terno e pessoas sem camisa, crianças e até um poodle, todos lá, juntos no protesto. Gritando, cantando, conversando e, claro, latindo (cada um se manifesta como pode, oras). Pensei em contar como levei um tiro de bala de borracha nas costas, como uma bomba de efeito moral explodiu a uns 2 ou 3 metros de mim, me deixou surdo do ouvido esquerdo por cerca de 2 horas e, ainda, como é curioso que depois de ficar imerso em nuvens de gás lacrimogênio duas vezes, a terceira, quarta e quinta pareciam não me afetar mais. Pensei em falar dos ônibus que vi picharem e como isso gerou debate entre as pessoas que estavam comigo e à minha volta ou como o grupo maior de manifestantes repudiou imediatamente quando não mais que 8 pessoas tentaram depredar placas de rua e lixeiras no trajeto.

Mas aí, no decorrer do dia de hoje, li uma série de relatos que contavam justamente isso. Contavam como foi pacífica e divertida a manifestação até que a polícia resolvesse atacar os manifestantes ali na Consolação. Li relatos da violência, li relatos de solidariedade, como aquele dos manifestantes ajudando um senhor cujo carro fora atingido por uma bomba de gás lacrimogênio e teve de sair às pressas do veículo. Li relatos muito bacanas e bem escritos, completos em suas narrativas e fiquei pensando se eu realmente tinha algo de novo e útil pra contribuir. E acho que por esse lado não tenho, sabe? Todo mundo que leu esses textos na internet hoje meio que já sabe muito bem o que aconteceu e tem uma ideia geral bem precisa do que foi o evento.

Agora à noite, no entanto, me veio a ideia de narrar o que presenciei, não pelos fatos e cenas, mas pelo escopo pessoal que foi minha experiência. O que senti, o que atraiu minha atenção e toda a simbologia que eu reconheci no protesto.

O Treinamento

Ocorre que o treinamento e a forma como ele afeta o ser humano é uma coisa muito interessante. Desde o treinamento militar do policial, que o imbui de um senso de dever e martírio capaz de alterar por completo sua moral e justificar suas ações que agridem seu senso de compaixão ou mesmo de autopreservação no cumprimento de uma ordem, até o treinamento médico que fez meu amigo e irmão correr por entre bombas e balas de borracha até o local onde ele identificou a possibilidade de haver alguém precisando de ajuda médica. Pois é, todos temos alguns treinamentos. Alguns têm vários. Eu, quiseram as variáveis sociais (perceba), tive um pouco de treinamento sociológico. E é legal porque de súbito o que nós intuímos é que na hora que começam as explosões, nosso treinamento vai para o espaço e o terror toma conta, mas isso não é bem verdade. Acho que do mesmo jeito que um bombeiro procuraria meticulosamente rotas de fuga, um militar procuraria posição estratégica e um médico procuraria feridos, eu fiquei lá meio sem ação, às vezes parado, procurando ver como aquela turba na qual eu estava inserido se comportava, o que diziam, que expressões traziam no rosto e até como se esbarravam. Foi essa imobilidade que me rendeu a bomba ensurdecedora, por sinal. Quer dizer, eu tive medo, tive raiva, tive empolgação e tudo mais que todo mundo teve porque, né, essa coisa de purismo racional só existe no (:spoiler: agora finado!) planeta Vulcan. Mas acima disso tudo, mantemos aquilo para que fomos treinados. Na sociologia e na antropologia, talvez a parte mais importante do treinamento é o contínuo exercício de dar um passo atrás e tentar enxergar os eventos através de seu processo humano, tentando empurrar pra longe nossa moral pessoal e afastar qualquer juízo de valor. Essa parte do que aprendi é, para mim, uma das coisas que mais me mudou como pessoa e transformou pra sempre a forma como me relaciono com o mundo.

O Protesto

O que consegui tirar de toda essa minha análise é que, de antes do protesto e da violência policial, já havia um descontento bem grande com a situação. É verdade que nossos amigos, familiares e colegas da tão afamada #classemediasofre society só começaram a apoiar, ainda que timidamente, a mobilização hoje, mas o protesto foi um catalisador, não um transformador. Eu infiro isso do que observei: pessoas no ato de origens e opiniões completamente diferentes. Pessoas dizendo que eram contra bandeira de partido, pessoas dizendo que eram a favor, pessoas dizendo que o manifesto precisava mais disso ou daquilo e, diferente daqui da internet, todos debatendo e se contrariando com muita educação e respeito. O padrão era o consenso ou concordar em discordar. Sem atrito.

Até aí, essa paz geral não me surpreendeu. Quem já leu uma coisinha ou outra de sociologia sabe que os períodos ou eventos de mobilização social nos apertam para junto da sociedade com mais força. É como se nosso eu individual ficasse mais esmagadinho num canto e o nosso eu social ocupasse mais espaço. É a famosa sensação de pertencimento que sentimos quando torcemos todos juntos para a seleção brasileira, quando algum desconhecido se machuca na nossa frente e várias pessoas completamente diferentes se juntam para ajudar etc. Essa sensação de que, seja bom ou não o que aconteceu, somos parte de algo maior e não sabemos dizer exatamente o porquê, mas sabemos que tem algo de muito significativo naquilo. A sociedade tem disso. E só ela. Ela nos traz experiências únicas que temos dificuldade em dizer se são boas ou ruins, mas são atraentes de alguma forma. Sentir-se um ET observando a cultura japonesa ou, minutos depois, identificarmos na mesma cultura japonesa algo em comum conosco e sentir-se estranhamente conectado com aquele brother que nasceu e viveu a vida toda do outro lado do planeta é algo muito curioso.

Se você gosta ou tem interesse nessas experiências, fica minha dica para você ir a protestos e manifestações. Tem muito disso. Aquela menina de dread vai passar e conversar com o cara engomadinho como se não houvesse, por um lado, um abismo cultural de opiniões entre eles e isso é impagável. Essa experiência foi o que mais presenciei e senti. Senti também uma sensação de apreço mútuo. As pessoas se olhavam em alguns momentos com uma expressão de congratulação mútua por estarem ali cumprindo com um dever cívico e ético. Talvez esse apreço “default” que rola num protesto também ajude no aumento do afeto e compaixão que sentimos nele. No começo do ataque da polícia, me refugiando na garagem aberta de um prédio que também estava sendo atacado, quando todos nós estávamos batendo em retirada, num canto, eu vi uma garota sozinha, com os braços cruzados e com cara de medo. Meu primeiro instinto, imbuído desse senso de solidariedade (Durkheim nunca mais me deixou ler essa palavra da mesma forma), foi de pegá-la pelo braço, gritar “vem!” e tirá-la dali. Mas o treinamento entrou em cena e por um instante me veio à mente todo o debate social acerca do machismo e como nossa sociedade treina(!) as mulheres para assumirem automaticamente que todo homem é uma ameaça e como meu gesto de ajuda poderia ser interpretado como um ataque e como isso, na verdade, poderia piorar a experiência pela qual ela estava passando adicionando mais medo. Pois é, acredite ou não, em menos de um segundo isso tudo me ocorreu e me fez decidir só gritar pra ela um “se esconde aí dentro do prédio!” e correr na direção da fumaça no meio da rua. Sei lá se fiz o melhor, talvez eu devesse sim ter tentado tirar ela dali. Espero que ela tenha ficado bem.

A Polícia

A polícia também é uma coisa muito interessante de observar. Claro. Eu fiquei até o finalzinho do protesto, lá na Av. Paulista, quando o que sobrara dos manifestantes ficaram correndo de um lado para o outro, forçando a PM a fazer um cooper que ainda deve estar queimando na musculatura de suas pernas. No caso, eu não estava atirando coisas neles e nem sequer gritando palavras de ordem ou provocações. Já estávamos, também, no ponto em que isso não era mais necessário para que a polícia te atacasse. O cidadão, ali na observação da polícia, era o carro. Pedestre era manifestante e manifestante era inimigo. Isso explica a bomba de gás dentro de uma farmácia à minha frente, os gritos e ameaças contra gente que se esmagava em portas de comércio entreabertas, os olhares desconfiados para todo mundo que assistia à Festa da Democracia implantada por nosso governador Alckmin e chancelada por nosso prefeito Haddad. Eu fiquei lá porque queria ver aquilo tudo. Eu já estava exausto, bem mais que meus amigos, mas queria ficar olhando. Tentando tirar algo daquilo tudo. E tirei. Mas a conclusão veio só hoje durante o trabalho.

Ontem mesmo e hoje conversando com um colega de faculdade pelo qual tenho muito apreço e que, por sinal, é (ou foi, não tenho certeza) policial militar, fui me forçando a fazer o difícil exercício de distanciamento que me permitisse compreender a ótica do policial. Eu nunca fui ingênuo a ponto de achar que a culpa ou o problema é o cidadão trabalhador por trás da farda. Sim, o cara pode ser um babaca ocasionalmente. Pode ser racista, pode ser machista, pode ser violento etc. Mas podemos todos e ele veio de nós. Então é preciso compreender se mudou e o que mudou em algum momento na vida desse cara.

Tendo isso em mente, daí pra frente, intuir as coisas fica até um pouco fácil pra quem já leu ou tem um mínimo de familiaridade com a cultura militar. Na sociedade existem muitas camadas culturais. Podemos chamar de subcultura? Se algum colega das ciências sociais me der bronca eu mudo isso. Enfim, se você é um skatista, você se reporta a uma subcultura que pode ter nuances morais diferentes, se você é um jornalista, idem. Até se você for um barista (que pra mim são como médicos especializados em nos ajudar a sobreviver ao cotidiano), você vai perceber que ali naquele meio profissional existem correntes de ideias e pensamentos que se diferem, um tantinho que seja, do que tá pairando de forma bem geral lá fora. As instituições militares não são diferentes.

Aliás, na verdade, elas são diferentes. A subcultura que rola nelas é MUITO mais forte do que em outras instituições. Isso não é só por causa das instituições militares, mas da forma como toda a sociedade as enxerga e as trata. Somos o que somos, mas somos muito mais aquilo que nos fazem. A hierarquia, o uniforme, o código de conduta, os ideais de guerra, enfim, tudo ali dentro conspira para que o cidadão militar se transforme em algo diferente do cidadão civil. E ele se transforma mesmo. Esperamos isso dele, afinal, ele tá num lugar que foi concebido para transformar uma criança (alistamento aos 18) em uma pessoa capaz de ignorar a moral e cumprir uma ordem porque cumprir ordens é sua nova moral, por pior ou absurda que seja a ordem.

Vi cenas de violência gratuita mesmo. Vi policiais descontrolados atacando manifestantes que os provocavam e vi uns 12 policiais, na minha frente, mexendo ameaçadoramente com uma garota que passava, perguntando o porquê de ela estar quietinha, dizer que ela estava fedendo a vinagre e rindo, todos, dela. Sabe aquela gangue de bully da escolinha dos filmes? Eram os próprios.

Mas para além da raiva de ver isso, também temos que entender: o policial brasileiro não é mal treinado. Ele é bem treinado pra caralho. Só que ele é treinado pra ser isso que é e lidar com uma sociedade com uma desigualdade absurda. Para cumprir seu dever e sobreviver, a ele é ensinado, de forma sutil, que existe um cidadão bom e um cidadão mau. O bom geralmente é branco e anda bem vestido. O mau olha pra ele com um certo medo ou raiva e geralmente não tá muito bem vestido. Quando o cidadão é mau, ele é inimigo e deve ser oprimido. Quando o cidadão é bom, ele deve ser ignorado ou salvo. Aqui em São Paulo, tem uma terceira nuance: quando o cidadão é um carro, aí sim mais do que nunca, ele deve ser protegido (exceto se estiver no meio do protesto, aí ele é uma perda aceitável).

A origem desse pensamento, lógico, não é o soldado. Ele não tem culpa, se é que vamos nos entregar a esse exercício inútil de julgamento. Mas ele vai agir de acordo com as ordens. Durante o protesto, pelo discurso do governador e do prefeito e pelo aparente apoio que a sociedade dava à repressão (antes de ela estar em suas portas, claro), o inimigo ali era o manifestante. E eu acredito que aqueles policiais, mesmo os “bullies” que olharam tão ameaçadoramente para a menina, realmente acreditavam que o pedestre ali na av. Paulista era o inimigo. Eu tenho quase certeza que quase a totalidade dos policiais que estavam na operação, se questionados, vão dizer que não se arrependem e que fizeram um bom trabalho. O que sensibiliza nossa moral, não sensibiliza a deles porque nós fizemos deles essa, nas palavras de Marilena Chauí, abominação ética.

O Conserto

Como a gente conserta isso? Muita gente tem falado em desmilitarização da polícia (os sempre brilhantes Safatle e Sakamoto, por exemplo), mas acho que esse termo na cabeça da maioria das pessoas significa só debandar os PMs e mudar a plaquinha nas delegacias para outro nome. Não é isso. O que precisa mudar é a cultura dentro da instituição e, principalmente, a forma como a sociedade se relaciona com ela. Somos parte no processo que torna o policial violento.

Se queremos um policial que proteja a população e não o governador, os bancos e as empresas que têm dinheiro para fazer lobby, precisamos de um soldado que quando o Coronel mandar ele atirar contra um protesto pacífico, volte-se para o mesmo Coronel e diga “Brother, cê tá louco? Nem fodendo que eu vou atirar nessa galera por causa de uma pichação de ônibus”. E para termos um policial assim, precisamos de um policial comunitário. Um policial bem pago que more na periferia e policie a periferia. Um policial bem pago que more na Av. Paulista e more por ali. Um policial que viu teu filho crescer e quando ele tiver “problemas com drogas”, não o espanque e não o veja como um drogado de merda, mas como um moleque que brincava com o filho dele e que tá levando uma pior na vida. “Ai nossa, mas isso é utópico”. Não, não é. Isso é bem mais fácil e bem mais barato que sustentar todo esse aparato de repressão militar que sustentamos. Utópica é nossa polícia como está. Ou distópica, sei lá.

Acima de tudo, precisamos continuar com os protestos e com as manifestações. Precisamos aprender que democracia não se faz nas urnas, se faz nas ruas. Saber que todo cidadão precisa sim ter opiniões sobre ao menos alguns aspectos da vida pública e que a vida pública e o Estado é deles. Por que você acha que fazem sucesso as ideias liberais e ultraliberais? Porque as pessoas não entendem e não acreditam que o Estado pode e DEVE ser delas. O protesto e a pressão política que dele emana podem tomar as rédeas do Estado e mudar nossa sociedade. E não, isso não é “ah, mas a longo prazo né?”. Isso pode ser rápido ou lento, dependendo de como se desdobrarem as manifestações de agora em diante. Essa pressão pode reconfigurar toda a forma como o Estado lida com as megacorporações, como lida com a polícia e como se traduzem nossos anseios no plano político.

A Missão

Por isso, defender o protesto que ocorre nas ruas, tanto pessoalmente no seu ambiente de convívio social, quanto na internet é algo muito importante. É importante quando vocês reprovam o amigo que faz apologia à violência policial. É importante quando vocês elogiam o amigo que muda de ideia ou concorda, nem que seja parcialmente, com a validade de protestar. É importante que não permita passar sem crítica discursos que criminalizem e/ou deslegitimem o protesto por causa de vandalismo.

Não importa se, como eu, você não se sensibiliza com ônibus pichado e algumas agências de banco apedrejadas. Você não precisa e nem deve justificar os atos dos poucos (e sim, eram pouquíssimos mesmo) idiotas que atiram pedras na quitanda do seu Zé ou quebrem o retrovisor do carro ainda não pago da dona Maria. Aliás, você pode recriminá-los também. Mas você não deve permitir que o discurso contra vandalismo se apodere do debate. As pessoas acham que não fazem diferença. Mas, de novo, tem essa coisa do treinamento que me força a vislumbrar esse fluxo que é a cultura e te dizer: até tuas conversas casuais na escadaria do prédio do escritório, entre um café e um cigarro, podem contribuir MUITO e mudar MUITO a cultura. Porque cultura é uma bola de neve.

O Descanso

Por fim, hoje, depois de ser cidadão, cientista social e manifestante. Voltei do trabalho e, lembrando de todas as conversas e vídeos, me recordei em especial de um momento muito precioso do protesto: quando passamos por baixo dos prédios e as pessoas nas janelas ovacionavam os manifestantes e jogavam papel picado, aplaudindo e cantando junto nossos gritos de ordem. Senti uma baita felicidade e, confesso, um pouco de orgulho por ter participado disso.

E, pô, aí foi minha vez também de ser um pouco humano: chorei.