Como todos os anos, Elnora preparou os quitutes. Assou o peru, fez a farofa, preparou as rabanadas que as crianças adoravam. Enfeitou o arroz. Na salada, ovos formando cogumelos com pintas vermelhas de catchup. Ao lado da mesa principal, as sobremesas: ambrosia, pavê de chocolate, fios de ovos, pudim de claras e um enorme panetone. Naquele ano, toalha nova, linda, com coloridas bolas de natal e pinheiros bordados. Ao pé da enorme árvore, detalhadamente enfeitada, muitos presentes. Filhos, noras, genro e netos eram esperados. Nas mesas auxiliares, baldes de gelo com espumante, água, refrigerante. Ela tinha pensado em tudo. Músicas natalinas tocavam ao fundo. Velas acesas davam o toque especial à decoração. Sete e meia… oito…nove horas. Elnora sentou-se à mesa. Nove e meia cortou o peru. Estava delicioso como tudo mais. Comeu devagar. Experimentou todos os pratos. Sorriu. Olhou pela janela. A noite estava esplêndida. Mais uma olhada no celular. Nenhuma mensagem. Sorriu de novo. Passou para a sobremesa. Levantou-se pegou o prato e começou a olhar em volta, escolhendo o que iria experimentar. Um pouco de cada, decidiu. Sentou-se novamente à cabeceira e sentiu o gosto amargo do metal roçando na língua e a garganta apertada tornava um pouco difícil o ato de engolir. Meia-noite enfim. Os sinos soaram. Elnora encheu as taças e brindou com cada uma antes de sorver o espumante fresquinho. Não se pode brindar com copos vazios. Terminado o ritual, foi sentar-se na poltrona. Tomou duas garrafas sozinha. Adormeceu. Viu-se criança a correr pelo quintal, toda de branco. Sentia a grama fresca sob os pezinhos descalços e ouvia a risada frouxa enquanto corria atrás dos pintinhos recém saídos do ovo. Enxergou-se menina a se preparar para o primeiro baile no seu vestido rosa. Ansiosa, esperava seu primeiro e único amor. Dançou nos braços de Roberto a quem amou intensamente. Viu-se deitada com sua filha nos braços e os sonhos que guardava para ela. Linda, fofinha, olhos de um azul sincero. Depois pode receber Antônio e vê-lo dar os primeiros passos, escrever as primeiras linhas. Neles perpetuava-se a risada gostosa, folgada. Acompanhou-os até a faculdade, ajudou-os nas suas decepções amorosas, participou cada vez mais timidamente de suas conquistas até que eles partiram. Isso foi um pouco depois da partida de seu amado Roberto. Lembrou a dor da separação. De repente, tudo ficou silencioso. Nos primeiros tempos, eles ainda vinham no Natal, mas com o passar dos anos, não deu mais e as visitas eram só promessas vazias de “se der”. Amargurou-se com a lembrança da espera. Das súplicas feitas para que ajudassem no super. Seus braços cansados não mais podiam com as sacolas, sua vista lhe pregava peças, ou seria sua mente. O tempo era um carrasco dos filhos. E ela entendia. Também se dedicara integralmente aos rebentos. Talvez devesse ter seguido o conselho para estudar, fazer alguma coisa, mas nada era mais prioritário que as crianças e Roberto é claro. Olhou a lareira enfeitada com meias cheias de doce, como sua mãe fazia quando ela era pequena. O Natal sempre foi uma data importante, esperada. Um símbolo de tudo o que Elnora gostava: casa cheia, mesa farta, risadas, abraços, presentes. De repente tudo se transformou em um turbilhão de pensamentos desconexos. A filha grávida. O neto ao telefone. O filho batendo a porta com força de depois de uma briga. A formatura. O primeiro emprego. Os telefonemas diários, depois semanais, depois… não havia mais telefonemas. Mas nem quando ela caiu! Contrataram uma enfermeira, a Dora. Devia ter convidado a Dora para o Natal. Porque Roberto não cumprira sua promessa de não deixá-la só. Mas ele era doze anos mais velho, no fundo ela sabia que ele partiria antes. Quem sabe não se demoraria também, mas antes queria ouvir mais uma vez a voz doce de seus amados filhos, nem que fosse através da secretária eletrônica. Acordou daquele sonho estranho e foi até o telefone. Ligou. Ouviu o bip: “Oi Raquel! É a mamãe. Não deu né. Mas combinamos para o ano que vem. Queria dizer que amo vocês e estou com saudade. Manda um beijo para teu irmão, pois não tenho o telefone novo dele e não esqueçam de passar aqui para pegar os presentes.” Desligou. Ouviu que do quarto vinha uma música. Achando estranho levantou-se da poltrona e com passos lentos caminhou pelo corredor. Era Debussy. Que lindo! Pensou. Abriu a porta devagar e lá estava, no meio do quarto, vestindo um fraque branco, mãos estendidas, olhos sorridentes seu amor. Não sentiu medo, nem espanto. Com o coração acelerado caminhou até ele envolvendo-o num abraço urgente. Era Natal, dia de celebrar. De repente não se sentia velha. De repente não se sentia só. Roberto ergueu-a nos braços e caminhou. Naquele Natal, finalmente ela não estava só.

 

Sobre a autora:

Gilda Satte Alam nasceu em Pelotas, onde ainda vive, nos anos 70. Escreve desde cedo, mas só recentemente tomou a coragem que todos precisamos ter para compartilhar sua obra. Em uma página no facebook, que você pode conferir aqui: https://www.facebook.com/gildasatte, Gilda publica os textos sempre embebidos em boas doses de lições espirituais, ensinamentos à sua maneira filosóficos e encharcados de emoções. Ler Gilda é ler a alma, seja dela, seja a sua, ou mesmo a dos próprios personagens que ela cria.