Dois aros negros, simetricamente colocados ao redor de duas grossas lentes que a faziam enxergar ainda que qualquer coisa estivesse distante demais para seus olhos nus. E por fim as duas hastes também negras que saiam uma de cada aro e agora repousavam cruzadas uma sobre a outra na mesa de cabeceira do lado oposto da cama. Essa foi a primeira imagem que eu tive ao acordar. Essa é a primeira imagem que eu tenho tido ao acordar nos últimos dois anos. Os óculos dela me observando sem os olhos por detrás. Tudo o mais já havia partido, roupas, calçados, discos, livros, fotografias haviam pouquíssimas e ainda assim se escondiam no fundo das gavetas, até mesmo a comida que ela deixou na geladeira dei aos vizinhos ou aos cachorros, já nem me lembro. E então os óculos. Por algum motivo misterioso minha cólera não havia se abatido sobre eles. Talvez porque eles sofressem tanto quanto eu, talvez porque fossem a única coisa dela capaz de enxergar que minha raiva não passava de tristeza.

Aos vinte e cinco anos ela descobriu que tinha miopia. Nós estávamos juntos há cinco anos já. Aos trinta nos casamos, depois de dez anos juntos. Aos quarenta e cinco ela me deixou, a mim e a tudo que ela tinha. Então eu deixei todas as coisas, tudo seguia sua história, encontrava novos donos, seguia sua vida tendo-a apenas como parte da história. Mas havia os óculos. Não eram mais os mesmos óculos que ela colocou aos vinte e cinco, o grau aumentara, alguma armação quebrara, coisas que acontecem com óculos, suponho. O que mesmo ela tinha feito com aqueles aros antigos? Acho que ela pôs no lixo, talvez eu devesse fazer o mesmo com esses. Mas eu não conseguia, eles eram o elo que eu fazia questão de manter, a única parte física da presença dela que ainda habitava minha vida. E me assombrava, mesmo dois anos depois.

Me levantei da cama, acendi um cigarro e caminhei até a gaveta da escrivaninha. Lá do fundo ela me sorria e então, como que se algo invisível finalmente tivesse se encaixado na minha cabeça, a resposta veio. Tirei a foto do fundo da gaveta e à devolvi  ao seu porta-retratos na mesa de cabeceira. Vesti uma calça, uma jaqueta e peguei os óculos. Era cedo ainda e o trânsito estava tranquilo da cidade até a nossa casa no interior. Estacionei o carro e caminhei alguns metros dentro da propriedade e ali, no descampado, às margens de um arroio, depositei os óculos junto às letras de bronze escritas no mármore “Aqui jaz Alice, amada esposa”. Agora tudo estava no seu devido lugar, ela voltaria a enxergar onde quer que estivesse e eu poderia voltar a viver.