O São Bento tinha aulas de cultura clássica, nas quais aos treze ou catorze anos lemos a Ilíada, a Odisseia e a Trilogia Tebana (Édipo rei, Antígona e Édipo em Colono). O São Bento tinha aulas de música, nas quais tocávamos flauta doce e decifrávamos partituras. Num tempo não exatamente pré-informática, mas anterior à disseminação doméstica de microcomputadores, o São Bento tinha aulas de datilografia, em que reproduzíamos, com mínima margem de erro, textos extensos e complexos. O São Bento tinha aulas de francês, com abundantes exercícios de gramática. O São Bento tinha laboratórios de biologia, química e física. O São Bento tinha duas bibliotecas. O São Bento tinha horta e pomar. O São Bento tinha um auditório, onde ocorriam apresentações teatrais e o sarau. O São Bento tinha sala de musculação, ginásio poliesportivo, campo de futebol, piscina e duas quadras, nas quais, entre outras modalidades, eventualmente se praticava o peculiar futevôlei filipino. Sim, até futevôlei filipino o São Bento tinha. Mas o São Bento não tinha meninas.

Estudei no Colégio de São Bento do Rio de Janeiro de 1986 a 1993, ano em que me formei no segundo grau. Ao longo de oito anos, aprendi um monte de coisas. Algumas úteis: por exemplo, Homero e Sófocles foram uns caras muito fodas. Outras nem tanto, como a técnica de rodar livros e cadernos na ponta dos dedos. Mas não aprendi a conviver com meninas. Não é um aprendizado que depende unicamente da escola, bem o sei. No fim do primário e no ginásio, porém, cumpri o regime de semi-internato: eu ficava no São Bento o dia inteiro, das 8h às 17h. Em outras palavras: a maior parte de todo o meu cotidiano se dava sem meninas.

Eu não entendia por que elas não podiam estar lá. Não conseguia compreender o motivo pelo qual não havia meninas a estudar conosco em sala de aula, a brincar nos pátios, a também vivenciar a experiência de frequentar uma escola tão idiossincrática — religiosa, tradicional, localizada no Centro da cidade. Eu sentia falta das amigas que não tinha. Amigas que decerto não participariam do porradobol, mas que conosco poderiam, talvez até com mais destreza, arremessar gaivotas de papel na Marinha. Amigas que nos forneceriam outra perspectiva dos livros que líamos. Amigas que nas provas de química nos dariam ou nos negariam cola. Amigas que tornariam mais interessante o modorrento vaivém das aulas de natação. Amigas que, como eu e meus amigos, de um instante ao outro passariam de tremendas filhas da puta a criaturas extraordinárias. Amigas, enfim, que cresceriam junto conosco, partilhando as descobertas e os dissabores dos ritos de passagem, tão caros a todos nós, homens e mulheres. O maior efeito que essa lacuna produziu em mim, adulto, é puramente tautológico: tenho muitos amigos da escola, mas nenhuma amiga da escola.

A ausência de alunas é um particular contrassenso numa instituição que diz preparar para a vida, e não para o vestibular. A vida pressupõe a convivência de ambos os sexos — no meio familiar, no meio escolar, no meio acadêmico, no meio social, no meio profissional. Nem como abstração sociológica existe uma vida estritamente masculina. Então por que meninas não podem estudar no São Bento? É o primeiro tópico da seção “Perguntas frequentes” no site da escola. Na íntegra: “O Colégio de São Bento, assim como todas as instituições religiosas antigas, foi concebido para funcionar atendendo a público do mesmo sexo da ordem religiosa, ou seja, ordens femininas organizaram escolas para meninas e moças, ordens masculinas, para meninos e rapazes. A Ordem Beneditina é uma das mais antigas no mundo e o Colégio de São Bento, um dos mais antigos do Brasil, hoje com 153 anos. Essa tradição no sistema brasileiro foi mantida até a Lei de Diretrizes da Educação de 1971, quando a maioria dos colégios passaram a ser mistos, não por obrigatoriedade, mas por nova orientação. No entanto, o Colégio de São Bento optou por permanecer no mesmo modelo que, até então, atende aos seus objetivos educacionais e por isso não há projeto de mudança”. O teor da última frase é repisado na resposta à pergunta seguinte. “Quando o CSB abrirá vagas para meninas?” “Por enquanto, não há nenhum projeto nesse sentido.”

Além do apreço à palavra “projeto”, dois aspectos sobressaem na combinação de ambos os trechos: não há motivo para a proibição de meninas a não ser o apego anacrônico à tradição em si; não há indício de que um dia a escola se torne mista. Nunca houve. O que havia eram apenas rumores. Todo ano dava-se como certa a entrada de meninas no ano seguinte. Quando o Colégio Militar enfim admitiu alunas em 1989, ano em que eu estava na sétima série, as esperanças eram exclamativas. “Até os milicos, cara! Agora os padres serão obrigados a ceder!” Não cederam, naturalmente. Como tampouco cederam em 2001, quando dom Lourenço de Almeida Prado, a quem se atribuía a defesa ferrenha do ensino só para meninos no São Bento, licenciou-se do cargo de reitor, que ocupou durante quase meio século. Como tampouco cederam em 2009, quando dom Lourenço morreu. Como tampouco parece que cederão, seja quando for, condenando o colégio à perpétua incompletude. Na elementar aritmética da vida, o sexo feminino não é subtração — é soma.

Por Daniel Seidl de Moura