Sobre Glauber Rocha

(num só fôlego, em voz alta, intenso, de pé) Glauber Pedro de Andrade Rocha, de Vitória da Conquista para o mundo, da pedra, coração – um homem, sua câmera, um brainstorm na película, várias idéias de uma puta cabeça – fonte de uma incandescente verborragia que metralhou a tudo e a todos: comunistas, fascistas, anarquistas, capitalistas – língua afiada e sem papas, uma contradição coerente com seu ser; foi conhecido, desconhecido, reconhecido – ainda que à tardinha! – e sua obra cresce cada vez mais, devorador de mitos que foi.

Glauber Rocha esteve além de tudo aquilo que é ordinário. Foi mentor de uma luminosa aparição brasileira, escreveu com as garras sua própria História. Expressou de maneira diferente – subverteu a linguagem, quebrando amarras acadêmicas, inventando novas formas de se contar histórias – e revolucionou também no conteúdo: mostrou um Brasil novo, inexistente pra quem olhava de cima.

Desbravou nas telas um mundo de energia, um grito bruto do quanto podemos ser e do quanto precisamos e devemos fazer por nós mesmos. Sua fúria justiceira e seus delírios oníricos romperam todas as barreiras que encontraram, e sua mão oculta até hoje dita vícios aos Jornais Nacionais da vida. Glauber continua vivo e suscitando discussões; sua obra não encontrou espaço em modismos de falsa vanguarda e é patrimônio da humanidade, declaração de amor e ódio à sociedade ocidental.

Menino-prodígio: rascunho e prévia do que viria a ser. Retratou a batalha entre Deus e o Diabo sobre o chão escaldante do sertão. Apenas 23 anos, mais da metade de sua breve existência. Câmera trêmula e ensandecida, instigadora de personagens, desafiadora ao espectador. A inteligentsia recebeu-o de braços abertos, querendo um pouco dele para si.

Glauber Rocha fez de sua vida um enigma de interesse inesgotável, tanto pela intensidade, quanto pelas profecias – entre elas, sempre disse que morreria aos 42 anos, e morreu. Foi uma fonte inesgotável de pensamento. Desafio à altura dos que ousarem se questionar. Paixão à primeira vista, amor em primeiro plano. De Vitória da Conquista para o mundo.

E do mundo para Sintra, Portugal. Tosse que deságua em sangue. A estrela que mais intensamente brilhou foi a primeira a extinguir sua luz. Sua existência foi luminosa. Tanta energia, tanta paixão. Um último quadro, uma câmera imaginária. Em sua cabeça, um filme… um livro, uma pintura, uma canção… um país.

 

Carta de Glauber Rocha

Carta de Glauber, aos 13 anos, para seu Tio Wilson, escrita em Salvador

Salvador, 15 de janeiro de 1953

Tio Wilson,

Demorei muito a responder tua carta, porém hoje o faço, já que me sinto disposto para tal.
Gostei do que me escrevestes e podes ficar certo que teus conselhos serão seguidos. Só tenho de discordar, ou melhor, explicar-te, acerca d´alguns pormenores sobre minha personalidade.
Quero que fiques tranqüilo a respeito da leitura de X-9 e Detetive, pois realmente poucas vezes eu os li; quanto as revistas em quadrinhos, eu as leio até hoje, de vez em quando, e ainda me distraio com as aventuras de Superman ou outro qualquer…
Não quero com isso que penses que sou criança, não! Mas é que uma história em quadrinhos faz-nos esquecer certas amarguras… Quanto à peça, quero explicar-te a razão da história se desenrolar em um país estrangeiro. Durante o ano letivo, eu e alguns colegas, interessados em teatro, resolvemos mostrar ao Colégio, em réplica a uma peça que levaram, “como se fazia teatro” (como se fôssemos teatrólogos diplomados). Bem, deixaram o argumento a meu cargo. Que fiz? Vim para casa e lutei em busca de um assunto invulgar, um assunto que revolucionasse a “turma”. Precisamos entregar tudo no dia seguinte. Pensei, pensei e nasceu-me aquela idéia. Rapidinho minha pena desenhou no papel todo o enredo. Mas… no Brasil não poderia ser, pois aqui não há pena de morte, então mudei para França. Aquela peça absolutamente não revela a minha personalidade (pois penso que um escritor deve escrever o que pensa e o que sente, enfim deve expressar a sua própria filosofia).
Creio que me entendestes.
Quanto a Poe e Kipling, já os li. O segundo melhor do que o primeiro (opinião minha!). E aquela sua poesia “Se” é o que de mais belo pode haver em matéria de filosofia mas que considero, assim por dizer, impraticável. Às vezes chego a duvidar do autor de Mowgli, o Menino Lobo, Kim e outros… Bem, duvidar porque acredito que ele não seguia os mandamentos que escreveu em “Se” e assim sendo seria… Bem, não pretendo e não estou à altura de criticar o grande poeta e escritor Rudyard Kipling. Mande-me tua opinião acerca dele. Quando a aprender e observar as coisas, obrigado; saberei de hoje em diante observá-las melhor.
Tio, se algum dia tornar-me escritor fique certo que escreverei sobre minha terra. Saiba também que prefiro os escritores brasileiros aos europeus. Não que tenha vasta cultura literária, a ponto de querer compara-los, mas prefiro conhecer antes a filosofia de meus patrícios para depois conhecer a dos europeus. Não quero dizer com isto que Dickens, Stevenson e outros são maus escritores.
Li Terras do sem-fim, de Jorge Amado, e achei mais do que “realista”. A sua linguagem poder-se-ia dizer quase imoral. Virgílio, Margot, Éster, Juca Badaró são sem dúvida personagens que cativam o leitor, porém nunca como o Eugênio, a Olívia, a Dora e o Simão, a Eunice e todos os outros personagens de Veríssimo em Olhai os lírios do campo; o li de uma só vez, tal o seu poder de atração, e pretendo relê-lo para sentir novamente a tragédia íntima de Eugênio e pensar na existência.
Quero confessar-te uma coisa: às vezes pareço-me com Eugênio, às vezes sinto o irrefreável complexo de inferioridade. São coisas da vida, creio que todos nós temos um pouco de Eugênio em nossas almas.
Tio, quero dizer-te ainda que nunca deixei-me influenciar por fitas cinematográficas ou histórias em quadrinhos. Bons filmes como O Cristo proibido, italiano, Chaga de Fogo, americano, Uma rua chamada pecado, americano, e Luzes da ribalta, de Chaplin, deixam uma certa impressão em nosso espírito, mas convém dizer que trata-se de filmes humanos, feitos por homens conscientes, cada qual procurando difundir sua filosofia através da sétima arte (tenho também de citar Orfeu, de Jean Cocteau).
Filosofia, sim, estou lendo. Schopenhauer (Dores do mundo), Nietzsche (Assim falava Zaratustra), além de pequenos comentários a respeito da filosofia de Bacon, Platão, Aristóteles, Sócrates, Spinoza, Voltaire e muitos outros. Filosofia faz-nos pensar melhor acerca do mundo e dos homens. Porém, como dizer-te que nunca seguirei o ponto de vista deste ou daquele? Nunca serei “superior” como Nietzsche, pessimista como Schopenhauer ou cínico como Voltaire, isto não! Podes ficar certo que procurarei seguir minha própria filosofia.
Como disse em minha carta anterior, vou estudar Direito. Agora, em 1954, vou começar “vida nova”, estudar, escrever e também… namorar; apesar de não ser nenhum Apolo ou um D. Juan na “lábia”, porém vou tentar. Acho muito difícil namorar: primeiro sou tímido, segundo odeio as mocinhas frívolas, terceiro só me interessam aquelas que forem cultas e inteligentes e que não ardem pensando no topete de John Derek ou T. Curtis, quarto não sou de “flirt” barato e passageiro, quero amor como no século passado: romance ardente e perigoso. Não sei como, mas tenho algo de impetuoso em meu espírito. Tenho raiva das coisas fáceis, idolatrando as que, para consegui-las, arranquem-nos suor da face.
Escrevi muito, talvez encontre asneiras, mas não importar-me-ei se, na próxima carta que me fizeres, apontá-as criticando-as separadamente. Quanto ao discurso, sinto muito: não houve uma cópia datilografada e limpa. Como sabes (se não sabes fique sabendo) sou displicente, portanto não cuidei do papel e sim do conteúdo. Obtive mesmo sucesso, pelo menos houve muitos aplausos e parabéns por parte de colegas, convidados, professores etc. Rasguei o original. Mas sei que não vais dar importância a isto.
Tenho um vasto plano para 1954, cheio de surpresas (apenas para mim e para o sr.). Mas surpresas apenas para nós, já que meus planos só a ti são revelados. Espere, que as surpresas talvez sejam boas.
Despeço-me, augurando-lhe um “happy new year” juntamente com a “tia” Fabíola e…
Até a próxima,
Glauber

 

Linha do tempo

“Glauber, magma barroco que, em transe, a Terra expeliu. Sol a pino em noite escura, tua paixão generosa e a lucidez dos teus delírios entregaram-nos, transfigurado em arte, o claro enigma da nossa História, labirintos do nosso destino. Glauber, Rocha ígnea que, em transe, a terra engoliu.”

Hélio Jesuíno
* * *

1939 Nasce, em Vitória da Conquista (BA), Glauber Pedro de Andrade Rocha, filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade Rocha.

1946 Aos sete anos, já alfabetizado pela mãe, entra para a escola, num colégio católico em sua cidade natal.

1948 Com a mudança da família para Salvador, Glauber passa a freqüentar o colégio presbiteriano Dois de Julho, recebendo intensa educação religiosa. Aos nove anos, escreve a peça El Hijito de Oro, encenada no próprio colégio.

1952 Aos 13 anos, participa de um programa sobre Cinema, o Cinema em Close-Up, na Rádio Sociedade da Bahia.

1954 Cursa o clássico no Colégio Central da Bahia. Escreve o balé Sèfanu, criticado por líderes do terceiro ano clássico como “esotérico e homossexual”.

1957 Ingressa na Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, que cursaria até o terceiro ano; participa do jornal de esquerda O Momento; colabora nas revistas culturais Mapa e Ângulos e no semanário Sete Dias; filma Pátio, seu primeiro curta, com pouquíssimos recursos.

1959 Inicia as filmagens de seu segundo curta, o inacabado Cruz Na Praça, baseado em um conto de sua autoria.

1960 Inicia as filmagens de Barravento, seu primeiro longa-metragem.

1962 Barravento recebe o prêmio Opera Prima no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary, antiga Tchecoslováquia; é também apresentado no Festival de Sestri Levanti, Itália.

1963 Publica o livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro; filma Deus E O Diabo Na Terra Do Sol.

1964 Deus E O Diabo Na Terra Do Sol concorre à Palma de Ouro em Cannes; recebe o prêmio da crítica mexicana no Festival Internacional de Acapulco, o Grande Prêmio do Festival de Cinema Livre, na Itália e o Naiade de Ouro do Festival Internacional de Porreta Terme, Itália.

1965 Num vôo entre Los Angeles e Milão, Glauber escreve o texto-manifesto A Estética da Fome, que seria apresentado publicamente em Gênova. Em novembro, é preso juntamente com outros intelectuais (entre eles, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony) ao protestarem contra uma reunião da OEA no Hotel Glória, no Rio de Janeiro. Glauber chamou o grupo de Octeto da Glória.

1966 Deus E O Diabo Na Terra Do Sol recebe o Grande Prêmio Latino-Americano no Festival Internacional de Mar del Plata; filma Terra Em Transe.

1967 Terra Em Transe é proibido em todo território nacional, por ser considerado subversivo e irreverente com a Igreja. Um mês depois, o filme é liberado sob a condição de que fosse dado um nome ao anônimo sacerdote interpretado por Jofre Soares; exibido em Cannes, Terra Em Transe ganha os prêmios Luis Buñuel, conferido pela crítica espanhola, e o da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica; recebe o Grande Prêmio e o Prêmio da Crítica no Festival Internacional do Filme em Locarno, Suíça; é considerado pela crítica cubana o melhor filme do ano; recebe do Museu Da Imagem e do Som (RJ) o Prêmio Golfinho de Ouro de melhor filme; ganha quatro prêmios no Festival de Cinema de Juiz de Fora, incluindo o de melhor filme.

1968 Filma O Dragão da Maldade Contra O Santo Guerreiro; participa como ator do filme Vent d’Est, de Jean-Luc Godard; filma, no Rio de Janeiro, Câncer.

1969 O Dragão da Maldade Contra O Santo Guerreiro é exibido em Cannes, onde ganha o prêmio de melhor diretor. Recebe outros prêmios, entre eles o da FIPRESCI, o Luis Buñuel, o da Confederação Internacional de Cinemas de Arte e Ensaio, o Primeiro Prêmio do Festival de Cinema de Plovaine (Bélgica); no Brasil, recebe o Troféu Coruja de Ouro e o Prêmio Adicional de Qualidade do Instituto Nacional de Cinema; vai à África filmar Der Leone Have Sept Cabeças.

1970 Filma na Espanha Cabeças Cortadas; Glauber volta ao Brasil, mas a repressão o faz desistir de filmar aqui.

1971 Glauber inicia seu exílio no Chile “para preservar minha expressão e minha integridade física”. No final do ano, viaja para Cuba, onde permanece até o fim de 1972.

1975 Em Roma desde 1973, filma Claro, gerando polêmica quando exibido no Festival Cinematográfico Internacional de Paris.

1976 Volta ao Brasil, depois de cinco anos de exílio; filma o velório do pintor Di Cavalcanti.

1977 O curta-metragem Di Cavalcanti ganha prêmio especial do júri do Festival de Cannes; realiza o média-metragem Jorjamado No Cinema; inicia as filmagens de Idade Da Terra.

1978 Cabeças Cortadas é liberado sem cortes pela Censura Federal.

1979 Estréia Cabeças Cortadas no Rio de Janeiro, complementado por Di Cavalcanti; a exibição do curta é logo proibida pela filha do pintor, através da 7ª Vara Cível do Estado.

1980 A Idade da Terra é exibido em Veneza, recebendo críticas negativas; após o resultado oficial, Glauber insulta Louis Malle (um dos vencedores do festival com Atlantic City), acusando-o de “fascista” e “cineasta de segunda categoria”; agride também a direção do festival, acusando-a de favorecer o cinema comercial; por conta do escândalo, A Idade da Terra fica de fora do Festival de Cinema Ibérico e Latino-Americano de Biarritz; em dezembro vai à Paris acompanhar uma retrospectiva de seus filmes.

1981 Encontra-se com o presidente Figueiredo em Sintra, Portugal; doente desde março, Glauber é internado no início de agosto num hospital próximo a Lisboa para tratamento de problemas broncopulmonares. Em 21 de agosto, é trazido de volta ao Rio de Janeiro, onde morre logo depois de ser internado. Poucos dias após sua morte, seus filmes estariam sendo exibidos em mostras retrospectivas em vários países, como Brasil, Inglaterra (National Film Institute), França (Instituit Nacional d’estudes Cinematographiques) e Estados Unidos (American Film Institute).