p12É difícil apresentar alguém que se movimenta em tantas esferas culturais diferentes, com suportes diversos e entrelaçados. Melamed move-se com fluidez pelas oportunidades criadas, aplicando idéias apaixonadas ao mundo à volta.

Melamed é um dínamo neural. Fomos conversar com ele pouco tempo antes da segunda apresentação de Regurgitofagia no festival Porto Alegre em Cena, em setembro passado. Ele nos recebeu de cara inchada, voz pausada.

“Vocês estão com sorte porque eu acordei agora, estou um pouco menos rápido.” 

(Não durou muito tempo. A fala ganha ritmo, o discurso é criado sem linearidade, repleto de sentidos ressignificados.)

p14“Tô preocupado com as entrevistas que eu dou. Quando vou olhar, pô, o leitor deve pensar: ‘Essa pessoa diz coisas sem nexo!’. Porque acaba sendo um discurso de muitas referências, e os istmos entre elas são muito curtos, tênues… então eu acho que tenho que falar mais devagar, sobre idéias mais específicas.”

Ele não consegue. Logo está emendando uma idéia na outra, divagando, pra voltar ao ponto inicial mais adiante, verbalizando meia viagem sináptica completa. A outra metade também fervilha, mas não chega a ganhar vez na vocalização e se manifesta nas pausas, na respiração, no cigarro muito tempo apagado entre os dedos por falta de espaço mental para acendê-lo. O poeta é um poeta é um poeta, o tempo todo.

 

Quem machuca quem?

Assistir Regurgitofagia é uma experiência embaraçosa e controversa. O poeta provoca, a platéia ri e aplaude. Essa reação é então captada por uma máquina, batizada pau-de-arara, que traduz a intensidade dos sons em choques elétricos no corpo do artista. Você quer demonstrar aprovação e, ao invés disso, o que consegue é causar dor no artista.

“Não dói tanto assim.” p13
Os choques variam entre 25 e 60 volts, e são aplicados por quatro contatos – nos pulsos e nos tornozelos. Isso faz com que, nos momentos de maior volume, o poeta grite, tenha curtos espasmos, pule. Mais chocante para a platéia do que dolorido para o artista? Dessa forma ele consegue manter o público permanentemente tensionado, dividindo-se entre momentos de silêncio mortal involuntário e gargalhadas interrompidas abruptamente.

Assistir Regurgitofagia é uma experiência única e marcante. Se a alma do teatro é a presença do público, que assiste a gênese da criação cênica e frui do espetáculo a energia viva, este expediente é extrapolado na catarse criada por Melamed. Ele remove os caminhos possíveis da passividade e inverte o óbvio: quem machuca quem? O público machuca o artista, mas o artista machuca o público. Melamed lhe dá a responsabilidade da reação e da ação, e o público interfere no controle, pagando o preço com seu desconforto.

 

A Regurgitofagia de si mesmo 

“Regurgitofagia é um trabalho de anos. Menos o livro em si; mais o conceito, a idéia, estar pensando sobre antropofagia, contemporaneidade, ser artista, até chegar no ponto de falar, ah, regurgitofagia, vomitar, um tipo de conceituação. Existe minha produção de textos, ao longo da vida, e em algum momento eu tinha um livro. Aí eu mandei o projeto pra bolsa Rio-Arte propondo o desenvolvimento de um monólogo com uma interface tecnológica. Consegui a bolsa e convidei Alessandra Colasanti e Marco Abujamra, dois amigos, pra dirigirem comigo o espetáculo.”

(A estréia foi em abril de 2004 no teatro Sérgio Porto, um espaço para 200 pessoas, com sessões à meia-noite, Desde lá, aproximadamente 50 mil pessoas já deram choque em Melamed. Meses depois, foi lançado o livro homônimo. Tanto um quanto o outro são a primeira parte de uma trilogia.)

“A peça começou a ter essa história louca e divina de encontrar eco. E a gente prorrogava de semana em semana. Quando chegou lá pelo terceiro, quarto mês, as pessoas perguntavam ‘Porra, e o texto?’ Aí peguei o livro, na loucura, no trabalho de transpor de novo uma coisa que saiu do livro original pra cena e de volta pro livro – porque os textos ganharam vida no palco, e lancei uma edição do autor.”

 

 De como compor um trabalho de difícil definição

(Em Regurgitofagia, há o monólogo de um ator. Há uma roupa tecnológica, cheia de compartimentos com os acessórios de cena. Há trilha sonora e há gravações. Há poesia falada e há improviso cômico. Há espetáculo. A pergunta não é ‘por que usar tudo isso’, e sim ‘por que limitar-se a uma mídia ou manifestação, se todas podem ser usadas, testadas e mixadas?’)
“O suporte é secundário, ele deve estar a serviço, ser ferramenta. Aqui, nesse caso, quais ferramentas eu estou apto de alguma forma a usar e que podem favorecer essa cena? Então são: a poesia falada – que é a minha história, de onde eu venho, CEP20000, meu interesse específico pelos beatniks e fundamentalmente pelo Lenny Bruce, que foi um cara me chamou muito a atenção, veio do stand-up comedy e passou por uma coisa política, e tal. Poesia falada, que não é recital, é uma coisa diferente… Performance: é, este espetáculo parece performance, tem todas as características básicas… Categoricamente, performance é mistura da vida e da obra do artista. É isso que acontece aqui. O personagem é, mas também não é. É a idéia de ruptura, de transformação, mutação; a obra está se transformando, está sendo criada ao mesmo tempo que está sendo executada. São todas referências de performance que fazem parte desse espetáculo. Artes plásticas: existe um aspecto de frisson visual, de gozo estético no espetáculo… E, fundamentalmente, teatro experimental, entendendo ele com a definição do Peter Brook, que é qualquer cena contemporânea, com pesquisa de linguagem espacial, texto…”

 

A recusa da marginalidade e da assimilação

(O experimental, que por si só não é mainstream, acaba sendo tachado de maldito, de menor, de loucura, de não-produto não-consumível; faz sentido essa diferença entre os rótulos? Quem, afinal de contas, tem autoridade para classificar? Barbara Heliodora e Gerald Thomas não viram Regurgitofagia como menor ou desimportante; pelo contrário, foram elogiosos. Mas não são eles quem ditam o certo e o errado. O certo e o errado não existem; a arte existe.)

 

“No Brasil quando você fala ‘teatro experimental’, parece que é isso: alternativo, independente. Não é isso, não tem alternativo, não tem independente. Não tem underground, isso não existe. É ground, é real, é obra de arte. 

“Na primeira vez, o espetáculo foi apresentado foi numa galeria de arte. Eu não sabia o texto de cor; tinha quatro horas de texto, que a gente botou num teleprompter, e eu ficava lendo, na galeria, parado, com a máquina (NE: o pau-de-arara), as pessoas ficavam em volta, saíam, entravam… era uma instalação. 

“Ezra Pound divide os artistas em três grupos: os revolucionários, os virtuoses e os diluidores. Meu interesse é nessa primeira categoria, isso é, a possibilidade de reinvenção, de quebra da linguagem institucionalizada.” 

 

Todos querem ver Melamed

(No Porto Alegre em Cena, Regurgitofagia foi a única peça a ter os ingressos esgotados no primeiro dia de venda antecipada. Imprensa e público sem bilhete, à procura de uma brecha, disputavam os últimos espaços do teatro do Instituto Goethe. (Quase ficamos de fora; fomos salvos pela produtora, Bianca, que nos estendeu dois ingressos.) A procura é crescente: apresentações para grandes platéias são cada vez menos raras, o Theatro São Pedro vai recebê-lo em três noites de novembro, a peça vai a Nova York. Melamed tem dois programas na TV Cultura. É o principal expoente da safra carioca que vem emergindo do CEP20000 – que ele
mesmo ajudou a criar. Melamed começou aos 15, hoje tem 28, e até pode dizer-se que o sucesso toca-lhe os calcanhares.)

 


“Isso tudo é muito bom por vários motivos, mas esse não é o cerne da questão. O cerne é o projeto de ser um artista, é ter uma obra. Eu já sei o próximo espetáculo que eu vou fazer, eu sei o próximo livro que eu vou fazer, sei que quero fazer um cd, etc – isso é o que eu quero fazer da vida. O resto tem suas delícias e suas merdas. 

“A minha audácia é falar em termos de obra. Regurgitofagia é uma obra. Estou fazendo arte; não estou fazendo um produto. Não tem público-alvo. Não tem ‘vamos facilitar aqui’, não tem concessão. Tem uma obra, a necessidade de comunicar uma coisa, com a melhor forma de comunicá-la. Ponto. Foi comunicado? Encontrou eco? Bingo! Não encontrou? Foda-se.” 

 

A Esperança é uma merda?

(Ao ser perguntado se Regurgitofagia alcançou o que ele esperava, ele ficou um pouco nervoso, um pouco perdido, parou, pensou, começou, parou de novo.)

“Não tem essa de ‘esperava’. Você é um artista, o que você objetiva? Eu entendo que arte é o redirecionamento do olhar, uma re-valoração das coisas… o objetivo é que essas perspectivas que você está propondo encontrem eco, que você possa ter interlocutores e que seja pertinente.

  “No caso específico de um trabalho em que você tem como base a questão do manifesto antropófago, do modernismo brasileiro, que é o momento auge da produção cultural, eu tô de fato dialogando com a tradição, é lógico que eu espero, eu esperava que as pessoas falassem, porra, esse cara tá pensando alguma coisa! ‘Esse cara tá pensando, que audácia!’ 

  “É um espetáculo. O que tem de novo é o desejo de ser real, de falar, cara, eu não tô fazendo uma mis-en-scéne, isso aqui é a minha vida, são as palavras que eu escrevi, é como eu penso as coisas, é quem eu sou… meu maior desafio é estar aqui, sou eu, entendeu, isso aqui existe, é real… é ter gana, vontade de olhar pras coisas e ver qual é. Acho que essa é a contribuição para o momento.” 

 

A trilogia ou o poeta usa parênteses invisíveis em sua fala

“São trabalhos de testemunho crítico da contemporaneidade. É o meu desejo, ou necessidade. (Como saber o limite entre essas coisas?) Eu tenho vontade, como artista, de olhar o mundo em que a gente vive e dar o meu depoimento após uma reflexão. E acho que, de alguma forma, isso pode ser quase novidadista hoje, porque não é o que está acontecendo. (Eu não sei o que está acontecendo direito, mas não é isso.) A grande parte dos trabalhos artísticos não tem esse viés, de querer parar e pensar ‘qualé, o que tá acontecendo no mundo?’

(Na noite anterior, ao final da apresentação, uma espectadora se revelou emocionada, chocada. ‘Não consegui fazer um som’, confessou. Outro, na saída, comentou que não conseguiu parar de rir, de tão engraçado que achou o espetáculo.)

“Que peças eles viram? Que vidas eles estão vendo? O único projeto que tem aqui, claro, é esse: de que não existe uma verdade. Essa é política da coisa. Não tem verdade, malandro.”

 

Dor na alma

“É uma experiência tão rica, fazer esse espetáculo. Irmão, já aconteceu tanta coisa, já foi de tanto jeito, e eu gosto de que seja assim, de estar num lugar diferente, com um astral diferente. Se é doído? Às vezes. Já foi; teve um período do espetáculo em que comecei a confundir um pouco, e realmente, antes de entrar em cena eu pensava, nossa, quem vai estar aí, o que essas pessoas querem fazer comigo? Mas era uma distorção. Foi um período que eu fiquei meio apavorado, de “que dureza”, que situação grave. Eu continuo achando grave, mas hoje em dia no sentido artístico, metafórico. Ficou claro pra mim o que é um personagem do espetáculo, e o que sou eu.”

 

Dor no estômago

(Regurgitofagia termina e Melamed sai do palco às pressas, sem receber os aplausos do público.)

“É uma cena do espetáculo. Quer dizer – o tempo todo estamos falando ‘fodeu’, é emergencial, fodeu, taí, que promessa é essa, entendeu, não vai ser o paraíso, não vai ser a revolução francesa, a revolução industrial, não tá na aposentadoria, não tá no futuro. É aqui, é agora, é escroto mesmo, é isso. Nêgo rouba qualquer merda, que bosta generalizada que está acontecendo nesse planeta! Então isso é parte desse espetáculo, estamos falando de coisas reais que estamos pensando e sentindo, e não tem essa de terminou o espetáculo e ‘Ah! (aplaude) É o artista! Que maravilha! Acabou!’ Não, não tem descompressão, não tem, acabou e vai com isso daqui. Continua. A peça continua. Saiu daqui, vai ver a peça lá fora.” 

 

Para terminar, uma entrevista

– Tu jogas futebol?

– Adoraria jogar futebol, mas ninguém me chama! (risos) 

– Tu sentes as canelas ainda? Não perdeste a sensibilidade depois de tomar tanto choque?

– Não perde…

– Não deixa seqüelas?

– Não deixa não.

– Qual é o time que tu torces?

– O mais querido do Brasil, né? Mengão.

 

Por Tiago Casagrande e Leandro Gejfibein