“Quero escrever movimento puro”, seja lá o quê isso queira dizer, é assim que Clarice dá início a este romance que é quase que uma meta-literatura. Ou, melhor dizendo, justificativas para a escrita; a relação entre o autor e seus personagens; as ações e emoções que se desenrolam.

Desse modo, Clarice trabalha com a idéia do autor em contraponto com a sua criação. Afinal, o enredo, ou mesmo o emaranhado de sentimentos (o quê, aliás, pertence mais à literatura de Clarice) não saem aleatoriamente, mas sim em função de toda uma vivência, experiência e diversas sensações adquiridas por este no decorrer da vida. Ao contrário do que alguns pensam e teorizam, um personagem nunca está à margem de seu criador, mais sim à beira, em uma eterna espreita.

Aparentemente, o enredo conta a história de um homem-escritor que começa a escrever um livro. Para tal, ele cria uma personagem: Ângela Pralini. No entanto, essa mulher é muito mais do que uma mera protagonista. Ela representa o não-ser deste homem ou o ser oculto que ele carrega dentro de si. Isso não concerne apenas ao fato de serem sexos opostos, mas de tudo o que uma pessoa gostaria de poder pensar, poder imaginar e elucubrar e nem ao menos chega perto. E isso é levado ao extremo uma vez que ela faz parte apenas do imaginário dele, possibilitando um espectro mais amplo e profundo de “realização” de seus desejos. Ele tem o poder nas mãos e, a qualquer momento, pode simplesmente fazer Ângela desaparecer. Ou fazer com que ele mesmo desapareça…

Um autor que se envolve de tal modo com sua produção, que não entende mais o limite entre o criador e a criação – relação esta tão limítrofe. “Ângela é meu equívoco? Ângela é minha variação?”, ele se pergunta em determinado momento. Quem pode definir quais são os limites entre o quê determinada pessoa é e o que ela deseja ser? Esta pode ser considerada a questão central de Clarice. Mais uma vez, questões labirínticas do ser. Abrindo e fechando caminhos internos, cosendo a possibilidade de se encontrar soluções, Clarice Lispector prova, novamente, que é uma das maiores escritoras brasileiras (quiçá, a maior), e que merece ser redescoberta a cada instante.